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CIÊNCIAS EXATAS CONTEMPORÂNEAS, de autoria de Álaze Gabriel.
Autoria:
Maria Cecilia de S. Minayo - Departamento de Ciências Sociais
da Escola Nacional de Saúde Pública. Rua Leopoldo Bulhões 1480 - 9o
andar, Rio de Janeiro, RJ, 21041-210, Brasil;
Odécio Sanches - Departamento de Epidemiologia e Métodos
Quantitativos em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública. Rua Leopoldo
Bulhões 1480 - 8o andar, Rio de Janeiro, RJ, 21041-210,
Brasil.
RESUMO
Este trabalho resume um debate metodológico em
processo na Escola Nacional de Saúde Pública, Brasil, sobre as duas formas de
abordagem mais correntes nas investigações da área de saúde: o método
quantitativo e o método qualitativo.
Os autores — uma antropóloga sanitarista e um
bioestatístico — demonstram, com argumentações teóricas e práticas, que esses
métodos são de natureza diferenciada, mas se complementam na compreensão da
realidade social.
Num mundo onde o que distingue o ser humano é a
linguagem comunicativa, o acento deste debate recai sobre a possibilidade, o
significado e os limites da linguagem matemática e da linguagem de uso comum na
experiência cotidiana.
Palavras-chave: Bioestatística; Métodos de Ciências Sociais;
Saúde Pública
INTRODUÇÃO
Este artigo tem sua origem em uma das atividades
curriculares do Curso de Pós-Graduação em Saúde Pública da Escola Nacional de
Saúde Pública (Ensp), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) — os denominados
Seminários Avançados de Teses —, quando os autores, discutindo um dos projetos
apresentados, tiveram a oportunidade de apontar as potencialidades e limitações
das abordagens quantitativa e qualitativa que estavam sendo utilizadas no
projeto em discussão.
Estas abordagens são os instrumentos de que se
serve a Saúde Pública, em particular, para se aproximar da realidade observada.
Nenhuma das duas, porém, é boa, no sentido de ser suficiente para a compreensão
completa dessa realidade. Um bom método será sempre aquele, que permitindo uma
construção correta dos dados, ajude a refletir sobre a dinâmica da teoria.
Portanto, além de apropriado ao objeto da investigação e de oferecer elementos
teóricos para a análise, o método tem que ser operacionalmente exeqüível.
Aceitando um desafio do Editor da Revista, dois
investigadores se encontram: um trabalha com a abordagem quantitativa; o outro,
com a metodologia qualitativa. Ambos defendem seus respectivos instrumentos de
ação, porém ambos os relativizam, pois só quando os mesmos são
utilizados dentro dos limites de suas especificidades é que podem dar uma
contribuição efetiva para o conhecimento da realidade, isto é, a busca da construção
de teorias e o levantamento de hipóteses.
Na primeira parte, a abordagem quantitativa é
examinada mais no contexto de uma linguagem. Sem particularizar para o campo da
Saúde Pública, procura-se evidenciar a evolução das idéias associadas a esta
abordagem na descrição e interpretação de fenômenos biológicos de um modo geral
(portanto, não adentrando a complexidade inter e multidisciplinar da Saúde
Pública).
Na segunda parte deste trabalho, a metodologia
qualitativa é abordada procurando enfocar, principalmente, o social como um
mundo de significados passível de investigação e a linguagem comum ou a
"fala" como a matéria-prima desta abordagem, a ser contrastada com a
prática dos sujeitos sociais.
Finalmente, procura-se concluir que ambas as
abordagens são necessárias, porém, em muitas circunstâncias, insuficientes para
abarcar toda a realidade observada. Portanto, elas podem e devem ser
utilizadas, em tais circunstâncias, como complementares, sempre que o
planejamento da investigação esteja em conformidade.
O conhecimento científico é sempre uma busca de
articulação entre uma teoria e a realidade empírica; o método é o fio condutor
para se formular esta articulação. O método tem, pois, uma função fundamental:
além do seu papel instrumental, é a "própria alma do conteúdo", como
dizia Lenin (1965), e siginifica o próprio "caminho do pensamento",
conforme a expressão de Habermas (1987).
O QUANTITATIVO
A Descrição Matemática como uma Questão de
Linguagem
O desenvolvimento da linguagem é uma etapa
fundamental na evolução do controle deliberado e consciente das circunstâncias
ambientais. A fala exerce um papel vital na rápida transmissão de grandes
quantidades de informação entre os diferentes elementos de um grupo. Quando se
atinge o estágio da escrita, cria-se, então, a possibilidade do registro
permanente, revisado e acumulado. A modificação consciente e intencional da
linguagem para servir a propósitos deliberados é uma etapa posterior do
processo.
Aqueles que acompanham e operam na evolução das
idéias e do conhecimento sabem que a situação atual da investigação científica
é urgente: os trabalhos científicos são produzidos a uma taxa sempre crescente,
tornando-se constantemente mais difícil acompanhar lado a lado os novos
desenvolvimentos, tanto na própria área de interesse específico quanto no
âmbito inter e multidisciplinar, independentemente da existência de meios
eletrônicos para armazenamento da informação.
Nas áreas denominadas ciências exatas, nos últimos
3 séculos tem havido consideráveis avanços a este respeito, já existindo,
atualmente, todos os pré-requisitos para o manuseio do crescimento acelerado do
conhecimento, principalmente o da linguagem, conforme acentua Bailey (1967).
De fato, a título de ilustração, consideremos
aquela que parece ser a mais antiga das ciências exatas: a Astronomia. É bem
conhecido o fantástico conhecimento adquirido pelos astrônomos da Babilônia e
do Egito antigo, não só envolvendo a observação prolongada e precisa dos
eventos, mas também desenvolvendo a habilidade para se distinguir padrões de
mudanças, sobre cuja base puderam criar um calendário suficientemente preciso,
que permitiu o desenvolvimento de atividades que, modernamente, constituem o
cerne da economia agrícola.
Na verdade, para se alcançar tais resultados era
necessário mais que observar os acontecimentos e registrar luz e calor nos dias
de verão, ou luz esmaecida e dias frios no inverno. A observação de padrões
reconhecíveis e a determinação e mensuração de suas posições eram essenciais. A
manipulação e o registro de tais medidas com propósitos de predição implicavam
a existência de uma linguagem e de uma escrita adequadas. Não é, pois, por um
acidente que a matemática babilônica e egípcia possuía as qualidades
suficientes para atender a tais necessidades.
A lição fundamental que se pretende extrair da
lembrança histórica de tal fato de conhecimento de todos é que, mesmo no
chamado Mundo Antigo, um conhecimento considerado suficientemente preciso não
teria sido atingido e aplicado sem as noções básicas de contar e medir,
acompanhadas de um adequado instrumento matemático para manipulá-las.
Isto parece corroborar nosso ponto de vista de que
uma interação entre pensamento e linguagem e, conseqüentemente, seu
desenvolvimento mútuo são pautados por uma correspondente interdependência
entre pensamento e matemática, quando nos dispomos a usá-la para propósitos de
maior precisão de expressão.
A despeito dos grandes avanços na Biologia
Molecular e na Engenharia Genética, reconhecemos, no entanto, que nas chamadas soft
sciences da Biologia, Psicologia, Sociologia, etc., o progresso tem sido
mais incerto. Uma razão para este fato é que os sujeitos da pesquisa, nestas
áreas, são muito mais variáveis e complexos que aqueles das denominadas
Ciências Exatas.
No entanto, à medida que as observações e
mensurações tornam-se mais acuradas e extensivas, no âmbito das soft
sciences tem surgido a oportunidade de se usar a linguagem matemática para
descrever, representar ou interpretar a multidiversidade de formas vivas e suas
possíveis inter-relações.
A questão fundamental, porém, é decidir que
espécies de arrazoados matemáticos são relevantes para determinados problemas,
que limitações estão impostas e como tais métodos podem ser ampliados e
generalizados. Não se pode perder de vista que o uso da linguagem matemática
leva a descrições e modelos idealizados, uma construção abstrata que, na
prática, na melhor das situações, será observada apenas parcialmente.
Quanto mais complexo for o fenômeno sob
investigação, maior deverá ser o esfoço para se chegar a uma quantificação
adequada, em parte porque algumas atividades são inerentemente difíceis de
serem mensuradas e quantificadas e, em parte, porque, até o presente momento,
descrições matemáticas excessivamente complicadas são extremamente intratáveis,
do ponto de vista de solução, para que tenham algum valor prático.
Deve, então, ser exercitada uma considerável
habilidade no julgamento de quais fatores são relevantes, ou pelo menos
aproximadamente relevantes, para um determinado problema.
A realidade, porém, é que nos defrontamos com uma
situação conflitante, que requer realismo e manejabilidade. Uma descrição
extremamente precisa de todos os fatos conhecidos, por exemplo, a respeito da
evolução de uma espécie, pode impedir qualquer representação matemática útil.
Por outro lado, uma supersimplificação do quadro matemático utilizado poderia
permitir, com grande facilidade, o cálculo numérico de certos coeficientes, mas
isto seria, ou poderia ser, totalmente infrutífero, porque muitos fatos
relevantes teriam que ser omitidos.
Este é, certamente, um dos dilemas presentes no
moderno trabalho de investigação como um todo, não se restringindo, portanto, à
investigação biológica, médica ou social.
O Papel da Teoria de Probabilidade e da Inferência
Estatística
Todos nós sabemos que características individuais
tais como peso, altura, pressão arterial, taxas de componentes bioquímicos no
sangue, resposta a estímulos externos, etc., variam entre indivíduos de um
grupo num dado instante e, num mesmo indivíduo, de instante para instante.
Ordem e regularidade só podem ser estabelecidas, de forma aproximada, em termos
médios e sobre um grande número de indivíduos.
Nossa impossibilidade de predizer antecipadamente,
e com certeza, os resultados de um experimento em sucessivas repetições, sempre
sob as mesmas condições, caracteriza-se como um experimento aleatório. A
variabilidade presente, nestas condições, é chamada variabilidade aleatória,
casual, randômica ou estocástica.
Em matemática, o instrumento adequado para
trabalhar o aleatório é um conjunto de procedimentos que constitui a chamada
teoria da probabilidade. Para todo evento aleatório é possível associar uma ou
mais variáveis, ditas variáveis aleatórias (função definida no espaço amostral
do experimento aleatório em questão), e para cada variável aleatória (ou
conjunto de variáveis aleatórias) é possível encontrar uma função que descreva
a distribuição de probabilidades para a referida variável (ou conjunto de
variáveis), dita função densidade de probabilidade.
O uso de distribuições de probabilidade para
descrever padrões biológicos, médicos ou sociais não é recente. Quetelet (1835)
já havia utilizado as propriedades da distribuição de Gauss para descrever
padrões de altura de seres humanos; Galton (1889), um médico inglês, havia
utilizado as propriedades da mesma distribuição nos estudos de genética sobre
herança natural, tendo sido o criador da teoria de análise de dados largamente
utilizada em estatística e conhecida sob o rótulo de regressão linear.
É importante observar que as distribuições de
probabilidade estão fundamentalmente associadas a conceitos matemáticos, embora
sejam derivadas das noções comuns de chance e possibilidade, estabelecidas pelo
senso comum, e as conclusões devam ser interpretadas em sentido prático.
Ao construirmos um quadro matemático válido de
alguns fenômenos com fortes flutuações aleatórias, introduzimos idéias de
probabilidades e usamos a teoria da probabilidade para desenvolver as
implicações práticas da mesma. Se o modelo é razoavelmente satisfatório, pelo
menos a algum respeito, então as implicações devem ser verificadas na prática.
Isto é, as conclusões matemáticas devem mostrar um certo grau de aproximação ou
aderência às observações que são feitas e aos resultados obtidos para o
fenômeno em questão.
É função da estatística estabelecer a relação entre
o modelo teórico proposto e os dados observados no mundo real, produzindo
instrumentos para testar a adequação do modelo. Em resumo, enquanto a teoria da
probabilidade está dentro da esfera da lógica dedutiva, a estatística
encontra-se no âmago da lógica indutiva, conforme explicita Bailey (1967).
A grande potencialidade dos procedimentos
estatísticos de análise de dados, na presença de variabilidade aleatória está
contida na possibilidade de se estabelecer inferência, neste caso chamada
inferência estatística.
Uma das aplicações da inferência estatística é o
teste de ajuste — também chamado teste de aderência (em inglês, goodness of
fit) — de um modelo teórico proposto ao conjunto de dados observados.
Formalmente, dois são os grandes problemas
estatísticos de natureza inferencial: os problemas de estimação de parâmetros e
os problemas de testes de hipóteses estatísticas.
As questões de inferência estatística que deram
origem à denominada estatística matemática surgiram de modo mais formal
com os trabalhos, quase simultâneos (e às vezes polêmicos), de Sir
Ronald A. Fischer e da dupla J. Neyman e E. S. Pearson, na década 20-30
(Neyman, 1976; Neyman & Pearson, 1967; Fischer, 1934), sendo brilhantemente
unificadas num contexto de teoria das decisões por A. Wald (Wald, 1950).
Um grande avanço tem sido conseguido nas ciências
da saúde, e em particular na Epidemiologia, com a criação de alguns
procedimentos inferenciais estatísticos, específicos para determinados desenhos
de estudo. No entanto, tem ocorrido um certo abuso na utilização de tais
procedimentos por parte de muitos pesquisadores desta área, que, desconhecendo
ou intencionalmente ignorando as limitações impostas a tais procedimentos pelos
pressupostos sobre os quais se assentam, extrapolam sua aplicações, deixando
sob suspeita os resultados da análise conduzida (Altman, 1991). Isto ocorre
principalmente nos testes de hipóteses estatísticas, em particular com o abuso
do chamado "p-valor" como uma medida de evidência em relação à
hipótese de nulidade (Miettinen, 1985; Stephen et al., 1988; Berger &
Selke, 1987; Goodman & Royall; 1985). Os estatísticos encontram-se
atualmente na situação dos bioquímicos e dos farmacólogos: não se sentem
responsáveis pelo uso indevido e abusivo de seus produtos. Não são procedentes
as críticas feitas à Estatística; elas devem ser dirigidas aos maus usuários.
Associadas às questões de inferência estatística
temos as questões de amostragem. Em regra, aqui também há um desconhecimento
quase geral, por parte dos não-especialistas, a respeito do papel da
amostragem, sua relação com a inferência e, conseqüentemente, os pressupostos
básicos que devem nortear a opção por um determinado desenho de amostragem e um
tamanho específico da amostra. Esta não é uma questão apenas técnica,
relacionada à definição do tamanho da amostra; não é uma questão meramente
estatística ou para deixar para o estatístico resolver. Pesquisadores
experimentados na área das ciências humanas (aqui incluindo as ciências da
saúde) não podem ignorar, e muito menos esquecer, que as questões de amostragem
são parte integrante das questões gerais de desenho da investigação.
O QUALITATIVO, SUAS POTENCIALIDADES E SUAS
LIMITAÇÕES
O Social como um Mundo de Significados Passível de
Investigação
Ao inscrever, no item anterior, a descrição
matemática como uma questão de linguagem, Sanches afirma que "quanto
mais complexo é o fenômeno sob investigação, maior deverá ser o esforço para se
chegar a uma quantificação adequada". Em seguida, o autor relativiza
as "descrições matemáticas complicadas" como sendo "extremamente
intratáveis", devendo o investigador defrontar-se com situações
conflitantes entre realismo e manejabilidade.
A reflexão de Sanches ajuda a introduzir o estudo
sobre as potencialidades e os limites do método qualitativo, dentro de uma
discussão epistemológica mais ampla.
Uma das questões colocadas sobre a cientificidade
das ciências sociais diz respeito à plausibilidade de se tratar de uma
realidade na qual tanto investigadores como investigados são agentes: esta
ordem de conhecimento não escaparia radicalmente a toda possibilidade de
objetivação?
Para responder a esta pergunta, uma corrente de
estudiosos das áreas humano-sociais, como Durkheim (1978), tem se munido de
dois argumentos metodológicos: a) é possível traçar uniformidades e encontrar
regularidades no comportamento humano; e b) regularidades predizíveis existem
em qualquer fenômeno humano-cultural e podem ser estudadas sem levar em conta
apenas motivações individuais.
Outros cientistas, porém, tentam encaminhar a discussão
de forma diferente, questionando se, ao buscar instrumentos de objetivação do
social apenas através da quantificação das uniformidades e regularidades, não
se estaria descaracterizando o que há de essencial nos fenômenos e nos
processos sociais.
No início do século XX, em Chicago, Estados Unidos,
e no final do século XIX, em Heidelberg, Alemanha, surgia uma escola
sociológica que se rebelava radicalmente contra a tentativa de analogia entre
ciências naturais e ciências sociais. Seu fundamento residia na argumentação de
que as ciências sociais privam-se da sua própria essência quando se abstêm de
examinar a estrutura motivacional da ação humana.
O desenvolvimento desta segunda corrente, em
oposição ao positivismo, deveu-se a estudiosos como Wilhelm Dilthey, embora
certas de suas raízes possam ser encontradas em Hegel, Marx e, até, Vico. Quem
deu maior consistência metodológica a esta reflexão, no entanto, foi Max Weber.
É de Weber a afirmação de que cabe às ciências sociais a compreensão do significado
da ação humana, e não apenas a descrição dos comportamentos. Weber também
afirma que o elemento essencial na interpretação da ação é o dimensionamento do
significado subjetivo daqueles que dela participam (Weber, 1970).
Da mesma forma, William Thomas (1970), um dos pais
da sociologia norte-americana, avançou na elaboração do clássico teorema
segundo o qual é essencial, no estudo dos seres humanos, descobrir como eles
definem as situações nas quais se encontram, porque "se eles definem
situações como reais, elas são reais em suas conseqüências" (1970:
245-247).
O que Weber e Thomas afirmaram tornou-se hoje um
axioma da investigação dos "objetos" sociais. A compreensão de que os
seres humanos respondem a estímulos externos de maneira seletiva, bem como de tal
seleção é poderosamente influenciada pela maneira através da qual eles definem
e interpretam situações e acontecimentos, passou a complicar o raciocínio sobre
a cientificidade enquanto modelo já construído.
A corrente compreensivista — mãe das abordagens
qualitativas — ganhou legitimidade à medida que métodos e técnicas foram sendo
aperfeiçoados para a abordagem dos problemas humanos e sociais. No entanto,
persistem muitas questões, complexas e profundas, que se tornam posições
intelectuais e ideológicas frente aos interrogantes teóricos, metodológicos
capazes de abranger os objetos com mais profundidade.
O positivismo de Comte (1978) e Durkheim (1978),
por exemplo, tem defendido que a única forma científica de apreender o social é
a observação dos dados da experiência, isto é, dos caracteres exteriores,
objetivamente manifestos nos fatos: "a posição epistemológica de base
do positivismo", dizem Bruyne et al. (1991), "é a recusa da
apreensão imediata da realidade, da compreensão subjetiva dos fenômenos, da
pesquisa intuitiva de suas essências". A atitude positivista é
caracterizada, quanto ao método, pela subordinação da imaginação à observação
(Comte, 1978). Os fatos são valorizados pelas suas características exteriores,
como bem o descreve Durkheim (1978): "é coisa todo objeto de
conhecimento que não é naturalmente penetrável pela inteligência (...) e que o
espírito só pode chegar a compreender com a condição de sair de si mesmo, por
meio de observações e de experimentações". Assim, resumindo, a
abordagem positivista limita-se a observar os fenômenos e fixar as ligações de
regularidade que possam existir entre eles, renunciando a descobrir causas e
contentando-se em estabelecer as leis que os regem. A lógica que preside esta
linha de atividade é de caráter comparativo e exterior aos sujeitos. O
positivismo não nega os significados, mas recusa-se a trabalhar com eles,
tratando-os como uma realidade incapaz de se abordar cientificamente.
Um dos marcos históricos a favor desta corrente foi
a tese de Doutorado de Samuel Stouffer, em 1930, na Universidade de Chicago
(naquela ocasião, o templo norte-americano da abordagem qualitativa), com o
título "An Experimental Comparison of Statistical and Case History
Methods of Attitude Research" (1931). Tal tese ensejou um amplo debate
acadêmico sobre a propriedade dos métodos quantitativos e qualitativos nas
ciências sociais, redundando numa clara prioridade a favor da abordagem
estatística, porque: a) foi considerada mais rápida, mais fácil de ser
viabilizada e capaz de abranger um número maior de casos; e b) as análises
qualitativas foram consideradas, quando muito, estudos heurísticos,
pré-científicos, subjetivistas ou, até, "reportagens malfeitas".
Ora, o debate da década de 30 não se encerrou; pelo
contrário, continua ainda hoje em todos os centros de reflexão sobre o social.
Os motivos que fundamentaram a crítica de Stouffer, no entanto, estão muito
mais relacionados ao pouco desenvolvimento de métodos e técnicas compatíveis do
que com a própria natureza do conhecimento. E é neste sentido que, ao contrário
do positivismo, a sociologia compreensiva coloca o aprofundamento do
"qualitativo" inerente ao social, enquanto possibilidade e único
quadro de referência condizente e fundamental das ciências humanas no presente.
Neste debate, como já se mencionou, W. Dilthey
(1956) separa as ciências físicas e as ciências humanas com um recorte
fundamental. Para ele, nas ciências físicas é possível procurarmos explicações
e lidarmos com a compreensão dos fenômenos através da análise de seus
significados. Nas primeiras estabelecem-se leis causais; nas segundas,
configurações e interpretações.
Weber (1970) elabora a tarefa qualitativa como a
procura de se atingir precisamente o conhecimento de um fenômeno histórico,
isto é, significativo em sua singularidade.
É no campo da subjetividade e do simbolismo que se
afirma a abordagem qualitativa. A compreensão das relações e atividades humanas
com os significados que as animam é radicalmente diferente do agrupamento dos
fenômenos sob conceitos e/ou categorias genéricas dadas pelas observações e
experimentações e pela descoberta de leis que ordenariam o social.
A abordagem qualitativa realiza uma aproximação
fundamental e de intimidade entre sujeito e objeto, uma vez que ambos são da mesma
natureza: ela se volve com empatia aos motivos, às intenções, aos projetos dos
atores, a partir dos quais as ações, as estruturas e as relações tornam-se
significativas.
No entanto, não se assume aqui a redução da
compreensão do outro e da realidade a uma compreensão introspectiva de si
mesmo. É por isso que, na tarefa epistemológica de delimitação qualitativa, há
de se superar tal idéia, buscando uma postura mais dialética dentro daqueles
três aspectos descritos por Bruyne et al. (1991): a) o movimento concreto,
natural e sócio-histórico da realidade estudada (sentido objetivo); b) a lógica
interna do pensamento enquanto sentido subjetivo; e c) a relação entre o objeto
real visado pela ciência, o objeto construído pela ciência e o método empregado
(sentido metodológico).
É necessário buscar o auxílio de pensadores como
Habermas (1987), para quem "uma teoria dialética da sociedade procede
de maneira hermenêutica. Nela, a compreensão do sentido é constitutiva. Tira
suas categorias primeiro da consciência que têm da situação os próprios
indivíduos em ação. No sentido objetivo do meio social, articula-se o sentido
sobre o qual se insere a interpretação sociológica, ao mesmo tempo
identificadora e crítica".
Em outras palavras, do ponto de vista qualitativo,
a abordagem dialética atua em nível dos significados e das estruturas,
entendendo estas últimas como ações humanas objetivadas e, logo, portadoras de
significado. Ao mesmo tempo, tenta conceber todas as etapas da investigação e
da análise como partes do processo social analisado e como sua consciência
crítica possível. Assim, considera os instrumentos, os dados e a análise numa
relação interior com o pesquisador, e as contradições como a própria essência
dos problemas reais (Minayo, 1982).
Voltando ao ponto inicial sobre as indagações
espistemológicas de tal abordagem, dir-se-ia que a cientificidade tem que ser
pensada aqui como uma idéia reguladora de alta abstração, e não como sinônimo
de modelos e normas rígidas. Na verdade, o trabalho qualitativo caminha sempre
em duas direções: numa, elabora suas teorias, seus métodos, seus princípios e
estabelece seus resultados; noutra, inventa, ratifica seu caminho, abandona
certas vias e toma direções privilegiadas. Ela compartilha a idéia de
"devir" no conceito de cientificidade.
Definir o nível de simbólico, dos significados e da
intencionalidade, constituí-lo como um campo de investigação e atribuir-lhe um
grau de sistematicidade pelo desenvolvimento de métodos e técnicas têm sido as
tarefas e os desafios dos cientistas sociais que trabalham com a abordagem
qualitativa ao assumirem as críticas interna e externa exercidas sobre suas
investigações.
Linguagem e Prática: Matérias Primas da Abordagem
Qualitativa
Segundo Granger (1982), a realidade social é
qualitativa e os acontecimentos nos são dados primeiramente como qualidades em
dois níveis: a) em primeiro lugar, como um vivido absoluto e único
incapaz de ser captado pela ciência; e b) em segundo lugar, enquanto
experiência vivida em nível de forma, sobretudo da linguagem que a
prática científica visa transformar em conceitos.
Falando dentro do campo sociológico, Gurvitch
(1955) diferencia também dois níveis de experiência em constante comunicação:
a) o "ecológico, morfológico, concreto", que admite expressão em
cifras, equações, medidas, gráficos e estatísticas; e b) o das "camadas
mais profundas", que se refere ao mundo dos símbolos, dos siginificados,
da subjetividade e da intencionalidade.
É exatamente esse nível mais profundo (em constante
interação com o ecológico) — o nível dos significados, motivos, aspirações,
atitudes, crenças e valores, que se expressa pela linguagem comum e na vida
cotidiana — o objeto da abordagem qualitativa.
Por trabalhar em nível de intensidade das relações
sociais (para se utilizar uma expressão kantiana), a abordagem qualitativa só
pode ser empregada para a compreensão de fenômenos específicos e delimitáveis
mais pelo seu grau de complexidade interna do que pela sua expressão
quantitativa. Adequa-se, por exemplo, ao estudo de um grupo de pessoas afetadas
por uma doença, ao estudo do desempenho de uma instituição, ao estudo da
configuração de um fenômeno ou processo. Não é útil, ao contrário, para compor
grandes perfis populacionais ou indicadores macroeconômicos e sociais. É
extremamente importante para acompanhar e aprofundar algum problema levantado
por estudos quantitativos ou, por outro lado, para abrir perspectivas e
variáveis a serem posteriormente utilizadas em levantamentos estatísticos.
O material primordial da investigação qualitativa é
a palavra que expressa a fala cotidiana, seja nas relações afetivas e técnicas,
seja nos discursos intelectuais, burocráticos e políticos.
Segundo Bakhtin (1986), existe uma ubiqüidade
social nas palavras. Elas são tecidas pelos fios de material ideológico; servem
de trama a todas as relações sociais; são o indicador mais sensível das
transformações sociais, mesmo daquelas que ainda não tomaram formas; atuam como
meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas; são capazes de
registrar as fases transitórias mais íntimas e mais efêmeras das mudanças
sociais.
Nestes termos, a fala torna-se reveladora de
condições estruturais, de sistemas de valores, normas e símbolos (sendo ela
mesma um deles), e, ao mesmo tempo, possui a magia de transmitir, através de um
porta-voz (o entrevistado), representações de grupos determinados em condições
históricas, sócio-econômicas e culturais específicas.
Uma das indagações mais freqüentes no campo da
pesquisa é a que se refere à representatividade da fala individual em
releção a um coletivo maior. Tal indagação constituía uma preocupação de
Bourdieu (1972) quando este definiu o conceito de habitus, segundo o
qual a identidade de condições de existência tende a produzir sistemas de
disposições semelhantes, através de uma harmonização objetiva de práticas e
obras: "cada agente, ainda que não saiba ou não queira, é produtor e
reprodutor do sentido objetivo, porque suas ações são o produto de um modo de
agir do qual ele não é o produtor imediato, nem tem o domínio completo".
Daí a possibilidade de se exercer, na análise da prática social, o efeito da universalização
e da particularização (180).
O referido autor define o conceito de habitus
da seguinte maneira: "um sistema de disposições duráveis e
intransferíveis que integra todas as experiências passadas e funciona a todo
momento como matriz de preocupações, apreciações e ações (...) o inconsciente
da história que a história produz, incorporando as estruturas objetivas"
(Bourdieu, 1972).
No mesmo sentido, existe um comentário feliz de
Sapir (1967) quando diz que o "indivíduo concretiza, sob mil formas
possíveis, idéias e modos de comportamento implicitamente inerentes às
estruturas ou às tradições de uma dada sociedade". O autor acrescenta
que "se um testemunho individual é comunicado, isto não quer dizer que
se considera tal indivíduo precioso em si mesmo. Essa entidade singular é
tomada como amostra da continuidade de seu grupo" (Sapir, 1967:90).
Resumindo, para Goldmann (1980), "a
consciência coletiva só existe nas consciências individuais, embora não seja a
soma dessas últimas".
Sociologicamente, diferente do que se passa com a
Psicologia, a análise das palavras e das situações expressas por informantes
personalizados não permanece, pois, nos significados individuais. A compreensão
intersubjetiva requer a imersão nos significados compartilhados. Sociólogos e
antropólogos têm desmonstrado que a função essencial das normas culturais é
prover os membros de um grupo ou sociedade com definições de situação
intelegiveis e intercambiáveis no coletivo. Sem isso, a vida social seria
impossível.
Portanto, se um estudioso do social astá apto a
entender a linguagem e a definição da situação típica de um grupo, estrato ou
sociedade — respondendo às indagações tradicionais da ciência —, ele está apto
também a predizer as respostas desse grupo com um certo grau de probabilidade.
As considerações acima encaminham-se para questões
de ordem prática, sobretudo em relação à representatividade da fala e da
observação das práticas, das instituições e do "evasivo da vida
cotidiana".
O confronto da fala e da prática social é tarefa
complementar e concomitante da investigação qualitativa, que, no entanto, em
alguns casos, limita-se ao material discursivo. Em particular, as abordagens
etnográficas não dispensam as etapas de observação e convivência no campo.
A ênfase quase absoluta na fala como material de
análise transforma a questão da descoberta e da validade em habilidade de
manipulação dos signos. Ela está fundamentada na crença de que a "verdade"
dos significados situa-se nos meandros profundos da significação dos textos.
Ao contrário, o ensinamento fundamental da
Antropologia é o cotejamento da fala, com a observação das condutas e dos
costumes e com a análise das instituições. Checar o que é dito com o que é
feito, com o que é celebrado e/ou está cristalizado. Desta forma, uma análise
qualitativa completa interpreta o conteúdo dos discursos ou a fala cotidiana
dentro de um quadro de referência, onde a ação e a ação objetivada nas instituições
permitem ultrapassar a mensagem manifesta e atingir os significados latentes.
Há vários métodos e técnicas de análise do material
qualitativo. E, assim, como observa Sanches a respeito do uso da estatística,
há trabalhos bem-feitos ou malfeitos. Há investigadores que não passam além do
que Bourdieu (1972) denomina "ilusão da transparência", da repetição
do que ouve e vê no trabalho de campo. Tal procedimento não pode ser atribuído
ao método em si, mas ao seu uso superficial e pobre. Segundo Granger (1982), um
verdadeiro modelo qualitativo descreve, compreende e explica,
trabalhando exatamente nesta ordem.
Para Nicole Ramognino (1982), um trabalho de
conhecimento social tem que atingir três dimensões: a simbólica, a histórica e
a concreta. A dimensão simbólica contempla os significados dos sujeitos; a
histórica privilegia o tempo consolidado do espaço real e analítico; e a
concreta refere-se às estruturas e aos atores sociais em relação.
CONCLUSÕES
Propositalmente, não se entrou, neste trabalho, nas
questões específicas da área da saúde, uma vez que a pretensão do texto era ser
introdutório de uma problemática que concerne e ultrapassa o campo. No entanto,
é certo que, hoje, os objetos de investigação, tanto dos professores como dos
pós-graduandos em Saúde Pública da Ensp, vinculam-se metodologicamente aos
temas aqui tratados, fato conhecido através do desenvolvimento das linhas de
pesquisa e dos projetos de tese.
A intenção dos autores, portanto, é apenas dar um
pontapé inicial num debate que consideram extremamente relevante e
indiscutivelmente possível e promissor.
Consideram que, do ponto de vista metodológico, não
há contradição, assim como não há continuidade, entre investigação quantitativa
e qualitativa. Ambas são de natureza diferente.
A primeira atua em níveis da realidade, onde os
dados se apresentam aos sentidos: "níveis ecológicos e morfológicos",
na linguagem de Gurvitch (1955).
A segunda trabalha com valores, crenças,
representações, hábitos, atitudes e opiniões.
A primeira tem como campo de práticas e objetivos
trazer à luz dados, indicadores e tendências observáveis. Deve ser utilizada
para abarcar, do ponto de vista social, grandes aglomerados de dados, de
conjuntos demográficos, por exemplo, classificando-os e tornando-os
inteligíveis através de variáveis.
A segunda adequa-se a aprofundar a complexidade de
fenômenos, fatos e processos particulares e específicos de grupos mais ou menos
delimitados em extensão e capazes de serem abrangidos intensamente.
Do ponto de vista epistemológico, nenhuma das duas
abordagens é mais científica do que a outra. De que adianta ao investigador
utilizar instrumentos altamente sofisticados de mensuração quando estes não se
adequam à compreensão de seus dados ou não respondem a perguntas fundamentais?
Ou seja, uma pesquisa, por ser quantitativa, não se torna "objetiva"
e "melhor", ainda que prenda à manipulação sofisticada de
instrumentos de análise, caso deforme ou desconheça aspectos importantes dos
fenômenos ou processos sociais estudados. Da mesma forma, uma abordagem
qualitativa em si não garante a compreensão em profundidade.
Esta observação torna-se necessária para rebater a
tese de vários estudiosos que, do ponto de vista científico, colocam, numa escala,
a abordagem quantitativa como sendo a mais perfeita, classificando estudos
qualitativos apenas como "subjetivismo", "impressões" ou,
no máximo, "atividades exploratórias".
Não cabe neste espaço desenvolver o tema, mas,
tanto do ponto de vista quantitativo quanto do ponto de vista qualitativo, é
necessário utilizar todo o arsenal de métodos e técnicas que ambas as
abordagens desenvolveram para que fossem consideradas científicas.
No entanto, se a relação entre quantitativo e
qualitativo, entre objetividade e subjetividade não se reduz a um continuum,
ela não pode ser pensada como oposição contraditória. Pelo contrário, é de se
desejar que as relações sociais possam ser analisadas em seus aspectos mais
"ecológicos" e "concretos" e aprofundadas em seus significados
mais essenciais. Assim, o estudo quantitativo pode gerar questões para serem
aprofundadas qualitativamente, e vice-versa.
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